por João Palhares
Jacques Pierre Louis Rivette foi um dos grandes vultos da Nouvelle Vague, ajudou a cimentar as ideias de “mise en scène” e de “autor” no cinema com os seus textos seminais sobre Howard Hawks, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi nos Cahiers du Cinéma, preparando assim o palco para a tomada de posse da sua geração, quase todos críticos da revista. De resto, não foi por acaso que escreveu em 1951 que “a única crítica verdadeira a um filme só pode ser outro filme”, como que para admitir que o único passo seguinte possível para si e para os seus colegas era a realização. Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Doniol-Valcroze, Charles Bitsch, até Jean-Marie Straub... Participam todos em Le Coup du Berger (1956). Coup du Berger é o chamado “Mate do Pastor”, que terá ganhado o seu nome quando um rei encontrou um pastor na montanha e o desafiou para um jogo de xadrez. Caso perdesse, seria decapitado, e se ganhasse era declarado rei dessa montanha. Ganhou a partida em quatro jogadas e ficou com a montanha. Qualquer jogo requer um equilíbrio difícil entre a cautela e a confiança, entre o respeito e a subestimação pelo adversário. Se vai tudo para um lado, sabotamo-nos a nós próprios, se vai tudo para o outro, sucumbimos à pressão e passamos vergonhas. É como tudo na vida, quase apetece dizer. Em Le Coup du Berger, que mostra o mate do título durante os créditos iniciais, e tem um comentário em off a comparar os esquemas de um marido e de uma mulher a jogadas de xadrez, Rivette parece subverter a máxima popular de que quando se tem azar ao jogo se tem sorte no amor, dizendo-nos em vez disso que tudo está relacionado. Só se pode supor se o realizador francês era ou não um aficionado do xadrez. Mas sabendo da sua grande admiração por Fritz Lang ou Otto Preminger, generais e estrategas autênticos nas suas rodagens, apreciando as viagens lúdicas de Juliet Berto e Dominique Labourier em Céline et Julie Vont en Bateau (1974) e tendo sobretudo em conta esse filme diabólico e extraordinário que é Não Toque no Machado (2007), em que Jeanne Balibar e Guillaume Depardieu avançam e recuam como na guerra nos seus jogos de sedução, torna-se fácil adivinhar a resposta. Le Coup du Berger será então a confirmação. Vaga adaptação de uma história de Roald Dahl, Mrs. Bixby and the Colonel's Coat, filmada também por Alfred Hitchcock para a sua série de televisão Alfred Hitchcock Apresenta, a quarta curta-metragem de Rivette tem no seu centro um casal só aparentemente feliz. A mulher está a ter um caso e passa a primeira parte do filme a tentar arranjar um esquema para justificar ao marido um casaco de peles que o amante lhe quer oferecer. Consegue fazê-lo arranjando a desculpa de um recibo perdido de bagagem. Só que as coisas não correm como estava à espera. Mas não convém revelar desenlaces. Peão branco para E4, peão preto para E5. Começa o jogo, espelham-se as jogadas. “O que é que ele sabe? O que é que vou poder fazer?”. Cavalo branco para C3, bispo preto para C5. Cada um segue pelo seu caminho com peças diferentes. “Vamos arriscar o esquema do recibo.” Peão branco para G3, Dama preta para F6. “Enganaste-te na mala”, diz ela. Bispo branco para G2, Dama preta para F2. “Merda.” Toma-lhe o peão, xeque-mate. Mate em quatro jogadas com as pretas, ainda por cima. Humilhação a dobrar. Bom, pelo menos não é um “Mate do Louco”. Enfim, nunca é boa ideia ceder aos impulsos e arriscar tudo durante uma partida de xadrez, ou de bilhar ou de póquer, sem saber o que está em jogo. E tudo são provas de resistência e de auto-controlo. É lembrar os treinadores de bancada irritados com os defesas que gostam de atacar as canelas dos adversários quando são provocados, “Usa a cabeça, pá!”.
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