Por Tiago Galvão Lucas
Pediram-me que escrevesse, de forma regular, textos sobre filmes que ligassem o cinema e o xadrez. Mais do que uma pessoa me sugeriu um filme que nunca vi, não interessa para aqui qual, e tendo em conta o filme que imediatamente me apareceu, deram-me a entender que lhes parecia uma escolha forçada, a minha, ou que não era bem isso o pretendido. Cabe a mim neste texto justificar o porquê da escolha. O filme é O Padrinho, de 1972, realizado por Francis Ford Coppola, com argumento deste e de Mario Puzzo (este último também autor do romance homónimo). Não há nenhuma referência a xadrez no texto do guião, não me lembro de aparecer no fundo (pode-me ter, contudo, escapado), mas é de xadrez e xadrezistas do que o filme trata. O xadrez é um jogo que se joga com peças num tabuleiro. Com peças humanas, não deixa de ser xadrez. N’O Padrinho, as vitórias e as derrotas pagam-se com a vida, dependendo das partidas. Mas não sentirá um grande xadrezista também, como se morresse um pouco, ao perder ou empatar um jogo?, dependendo da importância dele. Talvez haja quem considere isto demasiado. Perguntem então ao Kasparov o que ele sentiu quando empatou com o Carlsen, quando este tinha apenas 13 anos. Quanto ao filme. Começa com o casamento da filha do Grande Mestre (GM), Don Corleone. Este, numa sala longe da azáfama, pouco iluminada e a favorecer a reflexão, recebe vários pedidos para demonstrar as suas habilidades (uma simultânea) em troca de favores. Em causa não está a dificuldade dos jogos. Afinal, trata-se de, no primeiro caso, um xeque pastor, e, no segundo, depois de uma ameaça infantil do adversário, um matezito simples com sacrifício de cavalo, como veremos mais tarde. O GM está quase retirado dos grandes palcos, aborrecido com aqueles joguitos e parece que há muito tempo que só faz jogos deste calibre. Está destreinado para os grandes jogos.
Lá fora, ocorre o grande casamento e Michael, o filho mais novo do GM, está com a namorada, Kay. Ele sabe tudo sobre o jogo. Sentado, sem grande emoção, conta a Kay sobre um jogo em que, a dada altura, há uma oferta de peça recusada que depois se desenvolve numa desistência, já que o desfecho era óbvio. “He made him a offer he couldn’t refuse”: uma torre que entra em cena (Luca Brazzi) a posicionar-se, e até um leigo percebe que não tem defesa. Mas Michael desvaloriza o xadrez. Não é coisa para ele. “That’s my family, Kay. It’s not me”. Será?
Michael é o filho mais novo e o melhor aprendiz. O pai quer que ele entre no xadrez político. Michael não sabe o que quer, embora a toda a hora se veja nele uma ânsia de jogar o jogo do pai. E é quando o pai se descuida (com a idade qualquer jogador de xadrez perde qualidades) que Michael entra em cena, que Michael começa a viver. Primeiro há uma reunião com um adversário perigoso em que Sonny revela o pensamento das próximas jogadas do pai (“Never tell anybody outside the family what you’re thinking again”). O jogo evolui rápido. A torre de Don Corleone é tomada e o rei (no xadrez não somos sempre nós próprios o rei?) posto em xeque. Será mate? Quando o pai está no hospital desprotegido, Michael acorre a um jogo que parecia perdido e consegue um xeque perpétuo: empate. Parece. Mas não lhe é suficiente. A honra da família está em risco. E Michael vê o impossível. O adversário descuida-se num jogo que está ganho para ele e Michael consegue, num restaurante e a jogar de pretas, uma reviravolta. Brilhante. A sobranceria do adversário jogou a seu favor.
Vai para a Sicília. Apaixona-se. Oh, como se apaixona! E é lá que morre. E é assim, ao morrer, que estão reunidas as condições para se tornar num grande xadrezista, já que ser-se maquinal é o ideal para se ser um grande jogador (mas alguém consegue ganhar às máquinas?).
Sonny é um jogador intempestivo. Rapidamente perde a vida. Com isso, é permitido a Michael voltar e pai e filho preparam as próximas jogadas. Estão em sintonia. Agora estão a jogar de brancas, embora os outros ajam como se não. Antes de morrer, Don Corleone dá a Michael uma ideia de como será o ataque das pretas, displicente da posição das brancas.
Acima, está o mate indefensável em oito jogadas de Michael. Neste fragmento do filme aqui deixado, só falta a oitava jogada, o movimento do acertar de contas com o cunhado de Michael, responsável pelo assassinato de Sonny. Mas sabem que mais? O jogo já estava ganho. O tempo dedicado a esse movimento indica que o rei já estava encurralado, como se a jogada nunca se tivesse feito, como se o jogo tivesse ficado por ali por desistência. Contudo, Michael tinha de pegar na peça, Michael tinha de pronunciar xeque-mate.
No fim do filme, vemos a consagração de Michael como GM, quando lhe beijam a mão, em veneração. Kay, mãe dos seus filhos, assiste ao momento e confirma que Michael tomou o lugar do pai. A porta fecha-se. Um ciclo terminou, um novo começa.
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